Páginas

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A Diversidade da Vida e a Organização do Mundo

“Ela estava caminhando nesta direção quando chegou à floresta: parecia muito fresca e sombreada. ‘Bem, de qualquer forma é um grande conforto’ disse ela enquanto adentrava a mata, ‘depois de ter passado tanto calor entrar na— na o quê?’ ela prosseguiu, um tanto surpresa por não ser capaz de se recordar da palavra. ‘Quero dizer, para chegar sob a— sob a— sob essa, você sabe!’ colocando sua mão no tronco da árvore. ‘Como isso se chama, eu me pergunto? Eu acredito que não tenha nome— estou certa de que não o tenha!’” Este pequeno segmento de texto foi traduzido de “Through the Looking-Glass and What Alice Found There” de Lewis Carroll, trecho em que Alice chega à floresta em que as coisas não possuem nome. Imagine-se frente a uma situação dessas, em que os objetos, animais, plantas e outros elementos do mundo ao nosso redor não possuam designação conhecida. Um mundo em que nada está organizado de acordo com o nosso conhecimento e vivência. O homem vem procurando classificar e organizar o mundo em que vive e com o qual interage desde tempos imemoráveis. Alguns trabalhos vêm tentando resgatar a história do conhecimento acerca da classificação e sistematização do mundo que nos cerca e dos organismos com os quais lidamos e interagimos (Papavero & Balsa, 1986; Papavero, 1989, 1991). No decorrer de todo esse desenvolvimento histórico e cultural por que a espécie humana passou e tem passado, muitos foram os sistemas empregados na tentativa de se classificar e organizar o mundo que nos fascina, e do qual algumas vezes acabamos ficando alheios.

Segundo Nelson e Platnick (1981), houve uma grande colaboração filosófica dos gregos para o início da formalização da sistemática (ramo da biologia que estuda a organização em “estantes” dos seres vivos) através dos ideais de Platão. Este pensador defendia a posição de que apenas deveriam ser reconhecidos e validados como naturais grupos cujo reconhecimento se desse de forma inata no ser humano. Aristóteles, ainda, defendia os ideais fixistas de que as espécies são imutáveis e que não perecem com o decorrer do tempo, portanto os grupos naturais seriam formados pela essência e pela causa final compartilhadas, não se distanciando do ideal de Platão, que necessita do reconhecimento prévio e inato de tais grupos. Posteriormente, um dos grandes nomes da biologia, Carolus Linnaeus, emergiu com a ideia da nomenclatura binomial, composta por um nome genérico e um epíteto específico, servindo para designar as diferentes espécies. Apesar do discurso permeado pelo fixismo prévio, Linnaeus trabalhou com muito afinco num sistema classificatório dos organismos baseado em suas semelhanças.

Ainda no século XVIII, pouco tempo após Linnaeus, teve início uma corrente de naturalistas cujas teorias iam de encontro às ideias fixistas. Erasmus Darwin, Conde de Buffon, Geoffroy Saint-Hilaire, Georges Leclerc , Jean-Baptiste de Lamarck e outros quebraram o paradigma fixista instaurado entre os naturalistas até então. Lamarck propunha que o início da vida se deu de maneira simples e espontânea através de matéria inorgânica, desenvolvendo-se e se aprimorando com o passar de gerações, tornando-se mais complexa devido a alterações nos indivíduos decorrentes do ambiente em que viviam. Tais modificações eram regidas por suas necessidades e motivações internas. A isto se somavam as teorias do uso e desuso, que preconizava que um elevado grau de uso de uma determinada estrutura, bem como o baixo grau, eram capazes de moldar esta estrutura, hipertrofiando-a no caso de sua grande utilização ou distrofiando-a no caso do desuso, e a teoria da herança tênua, que se caracteriza pela transferência direta das modificações adquiridas para a prole, provendo-a com as novas características desenvolvidas. Ainda que postulando alguns aspectos errôneos em sua teoria, Lamarck foi um dos grandes precursores do pensamento não-fixista, fornecendo embasamento para as teorias de Alfred Russel Wallace e Charles Robert Darwin na segunda metade do século XIX.

Então, em meados do século XIX, a teoria da modificação com decendência a partir da seleção natural proposta por Wallace e Darwin tomou conta (mesmo que com um enorme número de opositores) do cenário científico. Esta teoria, com toda sua simplicidade, trouxe uma modificação drástica dos critérios para o reconhecimento de grupos naturais para a organização da vida terrestre. Ela postulava que a vida teria surgido uma, e apenas uma, vez neste planeta, tendo se ramificado como uma árvore originando diferentes ramos e linhagens. Sendo assim, todos os organismos vivos – e extintos – da Terra teriam se originado primordialmente de um único processo, tendo um único ancestral comum a todos os seres vivos. Com esta nova realidade, os grupos naturais seriam apenas aqueles que refletissem um processo histórico evolutivo, compartilhando um ancestral comum mais próximo entre os elementos deste grupo do que quando comparado com um elemento de fora do grupo. Então Ernst Haeckel, em 1889, construiu uma árvore de relações entre organismos baseado na análise comparativa de caracteres desses organismos, cunhando o termo “filogenia” para tal representação gráfica.

Foi apenas nos meados do século XX que propostas classificatórias foram surgindo, iniciando-se com a taxonomia clássica criada por Ernst Mayr, Gordon Linsley e Robert L. Usinger, que propunha que as árvores evolutivas poderiam ser construídas postando táxons terminais na ponta dos ramos e ancestrais diretos desses táxons situados nos nós das árvores. Contudo ineficiências e conturbações dessa proposta fizeram com que ela fosse deixada de lado. Então, pouco tempo depois foi proposta uma taxonomia baseada não nas relações evolutivas e de parentesco, mas num balanço geral das similaridades entre os organismos analisados. Para tanto seria construída uma matriz de similaridades entre os organismos, levantando-se o maior número possível de características para base de comparação. Então a partir desta matriz, um algoritmo computacional geraria um diagrama de proximidade, ou similaridade, entre os táxons analisados. Estes diagramas são chamados de “fenogramas”, e seus colaboradores são conhecidos como “feneticistas”, já que essa escola acabou recebendo o nome de taxonomia “numérica” ou “fenética”. Todavia foi Willi Hennig, em 1950 e 1966, que propôs um método bem embasado de classificação biológica. A base de seu pensamento era o processo evolutivo. Ele uniu termos da taxonomia fenética com a base teórica da evolução, fundando a sistemática filogenética (ou cladística), que priorizava as relações de parentesco entre os táxons. Com a finalidade de fundamentar sua teoria, Hennig propôs termos como homologias, características derivadas, apomorfias, plesiomorfias, grupos parafiléticos, polifiléticos e monofiléticos, etc. Portanto, o pensamento Hennigiano se calca no preceito de que dados três táxons A, B e C, dois deles têm necessariamente que ser mais próximos entre si – ou seja, partilhar um ancestral comum – do que um terceiro grupo (B e C têm de ser mais próximos entre si do que A e C ou A e B, partilhando um ancestral comum). A partir disto, podemos inferir, como fez o pŕoprio Hennig, que apenas é possível conhecer as relações colaterais de parentesco (relação de grupos irmãos) entre os táxons, sendo impossível o estabelecimento de afirmações sobre táxons ancestrais e táxons descendentes.

Desta forma, filogenias, ou cladogramas, são hipóteses sobre as relações de parentesco, ou seja, de grupos irmãos entre os organismos sob observação, tendo em vista determinadas características, podendo ter um alto ou baixo grau de suportabilidade. Trocando em miúdos, uma hipótese filogenética para um determinado grupo de elementos pode ser corroborada por novas características e informações ou ser falseada e refutada por motivo semelhantes. Portanto um mesmo grupo de seres vivos pode apresentar mais de uma (às vezes muito mais) possibilidade de cladograma, dependendo dos caracteres utilizados para a construção de tais árvores. Entretanto apenas uma destas reconstruções pode estar correta. Diante de tais fatos, não podemos deixar de conhecer os fundamentos teóricos que alicerçam esta organização do mundo em que vivemos e temos o dever de tentar esclarecer da melhor forma possível (ou seja, utilizando-se da maior quantidade de bases e métodos possíveis) a história evolutiva dos grupos.


Bibliografia

AMORIM, D. S. 1997 Elementos básicos de Sitemática Filogenética

CARROLL, L. 1896 Through the Looking-Glass and what Alice found there

NELSON, G. & PLATNICK, N. 1981 Systematics and biogeography: cladistics and vicariance

PAPAVERO, N. 1989 Introdução histórica e epistemológica à Biologia Comparada com especial ênfase à Biogeografia II. A Idade Média: a queda do Império Romano do Ocidente à queda do Império Romano no Oriente.

PAPAVERO, N. 1991 Introdução histórica e epistemológica à Biologia Comparada com especial ênfase à Biogeografia III. De Nicolau de Cusa a Francis Bacon(1493-1634)

PAPAVERO, N. & BALSA, S. 1986 Introdução histórica e epistemológica à Biologia Comparada com especial ênfase à Biogeografia I. Do Gênese ao fim do Império Romano

SANTOS, C. M. D. 2008 Os dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para a sistemática filogenética

Nenhum comentário:

Postar um comentário